
Poucos artistas brasileiros conseguiram deixar uma marca tão profunda e irreverente na cultura nacional quanto a atriz, comediante e cantora Dercy Gonçalves.
Reconhecida pelo seu humor ácido, língua afiada e energia inesgotável, ela entrou para o Guinness Book, o Livro dos Recordes, como a atriz com a carreira mais longa e ininterrupta do mundo - 86 anos seguidos. Relembre a seguir sua trajetória!
Nascida Dolores Gonçalves Costa em 23 de junho de 1907, na pequena cidade de Santa Maria Madalena, na região serrana do Rio de Janeiro, Dercy - seu nome artístico - enfrentou desde cedo uma realidade dura.
Na infância, Dercy e os irmãos foram abandonados pela mãe, que deixou a casa após descobrir uma traição do marido. Ela foi criada pelo pai alcoólatra.
Aos 17 anos, na década de 1920, ela fugiu de casa em busca de uma vida melhor, juntando-se a uma companhia de teatro mambembe, dando início à sua longeva carreira artística.
Nos palcos, onde estreou na cidade mineira de Leopoldina, Dercy moldou seu estilo inconfundível - espontâneo e irresistivelmente engraçado. Aos poucos, seu talento natural para a comédia e sua habilidade no deboche conquistaram plateias por todo o país.
Ela não tinha medo de rir de si mesma, de falar palavrões ou de quebrar regras de comportamento feminino em um ambiente conservador, o que lhe rendeu tanto críticas quanto uma legião de admiradores.
Dercy conquistou popularidade nas décadas de 1940 e 1950, quando se tornou uma das principais estrelas do teatro de revista, gênero que dominava a cena carioca e que misturava humor, música e sátira política.
No cinema, ela estrelou filmes como "Cala a boca, Etelvina", "Uma Certa Lucrécia", "Minervina vem aí", "A Grande Vedete" e "Samba em Berlim". Este último marcou sua estreia na sétima arte.
Na televisão, o sucesso não foi menor. Em 1963, Dercy tornou-se a atriz mais bem paga da TV Excelsior, emissora em que conheceu o jovem executivo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, futuro diretor influente da TV Globo.
Depois de uma passagem pela TV Rio, Dercy foi justamente para a Globo, onde apresentou o bem-sucedido programa de auditório “Dercy de Verdade”, entre 1966 e 1969. A atração chegou a ser suspensa por 15 dias pela censura após o AI-5, instituído pela Ditadura Militar de então.
Em 1970, ela apresentou em Lisboa a peça “A Dama das Camélias”, sob a direção de Flávio Rangel. No ano seguinte, comandou o “Dercy em Família”, uma tentativa de repetir o sucesso da Globo, mas sem o mesmo suporte de produção, o que resultou em curta duração.
A década seguinte começou com uma retomada vigorosa na carreira. Em 1980, interpretou a vedete Dulcinéia na novela “Cavalo Amarelo”, exibida pela Rede Bandeirantes, papel que repetiria em “Dulcinéia Vai à Guerra”.
Em 1981, recebeu o Troféu Imprensa de melhor atriz - empatando com Dina Sfat. No mesmo ano, retornou à TV Record, onde apresentou “Dercy Sempre aos Domingos”, criado e dirigido por Chico de Assis.
O final dos anos 1980 trouxe uma nova fase de reconhecimento para a artista. Com o fim do regime militar e o consequente abrandamento da censura, Dercy passou a integrar a bancada de jurados em programas de auditório, inclusive nos de Silvio Santos, e voltou a aparecer em novelas da TV Globo, como a participação especial em “Que Rei Sou Eu?", interpretando a Baronesa Lenilda Eknésia, mãe da Rainha Valentine.
Em 1991, tornou-se enredo da Unidos do Viradouro com o tema “Bravíssimo — Dercy Gonçalves, o Retrato de um Povo”, no Carnaval do Rio de Janeiro, e roubou a cena ao desfilar no carro alegórico final com a parte de cima do corpo à mostra - um gesto provocador que sintetizava sua irreverência até o fim.
Em 1992, brilhou novamente na TV Globo ao interpretar o anjo Celestina na novela “Deus Nos Acuda”, de Silvio de Abreu. Sua vida foi contada em “Dercy de Cabo a Rabo”, biografia escrita por Maria Adelaide Amaral em 1994, e mais tarde transformada em minissérie, “Dercy de Verdade”, dirigida por Jorge Fernando e exibida em 2012.
Nos anos 2000, já consagrada, ela ainda se aventurou em um programa próprio, que durou pouco tempo. Em seguida, passou a integrar o elenco fixo de “A Praça É Nossa”, no SBT, ao lado de Carlos Alberto de Nóbrega, onde conquistou uma nova geração de espectadores.
Em 2006, já com 99 anos, Dercy recebeu o título de Cidadã Paulistana no Salão Nobre da Câmara Municipal de São Paulo.
Dercy Gonçalves teve uma vida amorosa intensa. Ainda jovem, foi noiva de Luís Pontes, mas o casamento foi impedido pela família do noivo. Em 1934, após se recuperar de uma tuberculose e deixar o circo, viveu um relacionamento com o exportador de café Ademar Martins, então casado, com quem teve sua única filha, Maria Dercimar Gonçalves Senra - na foto -, que morreu em 2023, aos 88 anos.
Apesar de Ademar ter reconhecido a criança e ajudado financeiramente, o casal não pôde viver junto, e Dercy acabou criando a filha sozinha. Anos depois, foi casada com o jornalista Danilo Bastos, entre 1942 e 1959, e também teve um relacionamento com o apresentador Ari Soares.
Dercy Gonçalves morreu em 19 de julho de 2008, aos 101 anos, no Hospital São Lucas, em Copacabana, vítima de complicações de uma pneumonia. O governo do Rio de Janeiro decretou três dias de luto oficial. Atendendo a um desejo seu, ela foi sepultada em pé, dentro de uma pirâmide de cristal em sua cidade natal, Santa Maria Madalena.